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Marcel de Souza


CRÔNICA (pág.11)
Francisco Assis de Sousa Lima*


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Márcio Melo*


CONJUNTURA (pág.15)
Abuso sexual


DEBATE (pág.18)
Doença negligenciada


GIRAMUNDO (pág.24)
Curiosidades da ciência e tecnologia, da história e da atualidade


PONTO.COM (pág.26)
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HISTÓRIA DA MEDICINA (pág.28)
Tributo a John Snow


HOBBY (pág.31)
Entre o hospital e o hipismo


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Uma casa ecológica


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Dicas de leitura da Redação


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É DO BRASIL!


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CARTAS & NOTAS (pág.43)
Exame do Cremesp agora é obrigatório


TURISMO (pág.44)
Mato Grosso do Sul


FOTOPOESIA (pág.48)
Odylo Costa, filho


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Edição 60 - Julho/Agosto/Setembro de 2012

DEBATE (pág.18)

Doença negligenciada

Por que o Brasil ainda não eliminou a hanseníase?

Falta de capacitação dos estudantes de Medicina e dos médicos de diversas especialidades, falhas do sistema público de saúde e baixos índices de desenvolvimento humano são apontados como as causas principais da não eliminação


Rosa Soares, Ieda Verreschi e Leontina Margarido

A hanseníase atinge, ainda, 1,54 de cada 10 mil brasileiros. E, pior, a maioria dos doentes ainda é diagnosticada tardiamente, embora  existam tratamentos que impedem a evolução da moléstia e previnem as sequelas responsáveis pelo estigma da doença. O Brasil detém 40% dos casos na região das Américas e é o 2º do mundo em número de ocorrências, depois da Índia. São números avassaladores. Contudo, muitas escolas médicas brasileiras não preparam seus alunos para fazerem, pelo menos, a suspeita diagnóstica da doença. As políticas públicas de saúde, nos vários níveis de governo, deixam a desejar, o que é paradoxal em um país que tem o maior sistema de saúde público do mundo e programas de Aids, transplantes e vacinação fantásticos.

Estes e outros temas relativos à
Moléstia de Hansen foram debatidos pela médica sanitarista Rosa Castália F. R. Soares, mestre em Saúde Pública e responsável pela Coordenação-Geral da Hanseníase e Doenças em  Eliminação do Ministério da Saúde; e pela dermatologista Leontina C. Margarido, prof. dra. do Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicina (APM); com a mediação da médica endocrinologista, diretora acadêmica da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Unifesp/Osasco e conselheira do Cremesp, Ieda do Nascimento Verreschi.


Ieda Verreschi: A ideia de se fazer um debate sobre a Moléstia de Hansen (MH)  surgiu quando a dra. Leontina me procurou para falar sobre alguns aspectos da doença que não são comentados. Há um tabu sobre o assunto. É difícil se falar, mesmo aos médicos, de doenças que fazem parte da humanidade há muito tempo, mas ainda estão muito presentes em nosso país.

Rosa Castália: A ocorrência das doenças ditas ‘tropicais negligenciadas’ mantém uma relação intrínseca com a questão dos determinantes sociais. Esse termo foi adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no final da década de 90. É um grupo de 14 doenças existentes em áreas com pouca água potável, saneamento básico e índice de desenvolvimento humano muito baixos. Não há vacina para a hanseníase e alguns casos são muito complexos e difíceis de serem diagnosticados. Em 2009, a OMS definiu uma estratégia para a eliminação, o controle e o enfrentamento desse grupo de doenças. A hanseníase é a principal delas, especialmente no Brasil, que notificou, em 2009, 33.955 casos da doença. A região das Américas registrou cerca de 40 mil casos, ou seja, o Brasil detém cerca de 90% dos casos da região. É preciso esclarecer que eliminação não quer dizer erradicação. Significa um patamar de menos de um caso para cada grupo de 10 mil habitantes. Com este índice, a reprodutibilidade da doença fica mais difícil e o circuito de transmissão começa a ser quebrado. O Ministério da Saúde criou, há alguns anos, a Coordenação de Hanseníase e Doenças em Eliminação, que faz análise epidemiológica e propõem intervenções para esse grupo de doenças. Ter uma meta para diminuir o número de casos de uma doença é muito importante como motor político para convencer os gestores, já que, lamentavelmente, saúde pública não se faz só com os médicos, mas também com os gestores e os secretários de saúde, que nem sempre são médicos.

Ieda: Tendo em vista o trabalho que tem sido desenvolvido pelo Ministério da Saúde, a meu ver já era para não termos mais de um caso por 10 mil. Seria interessante ressaltarmos algumas possibilidades para combater melhor a doença, visando que ela saia da faixa crítica de prevalência.

Leontina: Desde que organizamos o núcleo multidisciplinar de Hansenologia, em 1985, no HC da Fmusp, percebemos a importância da participação de diferentes especialidades no atendimento à doença. Por exemplo, como suas primeiras manifestações ocorrem no sistema nervoso periférico, é fundamental que todo neurologista saiba diagnosticá-la. Assim como o dermatologista, o oftalmologista, o otorrino, entre outros especialistas. Em 1999, iniciamos um trabalho de campo com a participação de residentes e alunos, devidamente capacitados para diagnóstico precoce da Moléstia de Hansen, às comunidades carentes de São Paulo, como Heliópolis, Brasilândia, Vila Penteado e Jardim Fontalis. Com a busca ativa foi possível diagnosticar a doença, em geral precocemente, em média em 6,5% das pessoas atendidas. Na Vila Penteado, detectamos MH em 10,4% dos examinados. Isso me preocupou muito. Percebi que se todas as escolas médicas instruírem bem seus alunos, eles terão condições de diagnosticar os maiores agravos brasileiros, como hanseníase, esquistossomose, leishmaniose, sífilis, tuberculose, etc. Porém, como membro da Comissão de Ensino da Sociedade Brasileira de Dermatologia, detectei escolas de Medicina brasileiras, mesmo no Norte do país, que não davam sequer 1 hora/aula teórica sobre essas doenças durante todo o curso. Inclusive na classe socioeconômica mais alta há pacientes com diagnósticos muito tardios. Nossa busca ativa pode confirmar a endemia oculta existente em nosso país. Fizemos o mesmo tipo de trabalho – com alunos e residentes treinados – no Maranhão, no Acre e no Amazonas, e encontramos, também, um número altíssimo de doentes. Por isso, redigi um documento comparando a lepra do rei Balduíno IV, de Jerusalém, em 1174, com a hanseníase dos brasileiros em 2012.


"A maioria dos brasileiros é diagnosticada tardiamente(...) É preciso capacitar os médicos e graduandos" - Leontina

O rei foi diagnosticado até que precocemente, na infância, por seu professor, um historiador famoso, conhecido na Europa da Idade Média, e foi coroado aos 13 anos, com a hanseníase em plena evolução. Em 2012, quase mil anos depois, o brasileiro ainda é diagnosticado tardiamente, apesar dos avanços que a Medicina teve nesse longo período. O rei Balduíno teve sequelas importantes, morreu cego e sem andar, porque, naquela época, não havia tratamento. Mas, hoje, quando o paciente é diagnosticado precocemente e é tratado, interrompe-se a evolução da moléstia, impedindo a instalação das sequelas. No entanto, a maioria dos brasileiros é diagnosticada tardiamente, quando já tem algum grau de incapacidade. É um problema muito sério e a falha está na escola.

Ieda: Poderíamos ouvir da dra. Rosa um parecer do Ministério da Saúde. Gostaríamos de saber o que está sendo feito e o que se tem por fazer, o que está aberto a propostas... Seria muito bom podermos fazer um trabalho conjunto.


"Em 2001, tínhamos 399 casos para cada 10 mil habitantes. Em 2012, temos 1,54/10 mil. É uma queda significativa" - Rosa

Rosa: A dra. Leontina levantou muitas questões e aspectos, e para cada uma delas existem múltiplas considerações. Mas, antes, gostaria de citar – para organizarmos a reflexão – alguns números da hanseníase no Brasil. Temos, atualmente, uma taxa de prevalência de 1,54 casos para cada grupo de 10 mil habitantes. Em 2011, diagnosticamos 33.955 casos novos, dos quais 2.420 crianças menores de 15 anos, tal como o rei Balduíno. Os indicadores estão diminuindo lentamente, mas de forma significativa. Por exemplo, em 2001, tínhamos 3,99 casos para cada 10 mil habitantes. Em 2012, temos 1,54. É uma queda significativa. É interessante que o padrão espacial de distribuição permanece o mesmo. Os três Estados de alta endemicidade são: Mato Grosso, Maranhão e Pará, sendo o primeiro o campeão absoluto. O Tocantins já entrou para a média porque fez um trabalho fantástico de descentralização do diagnóstico e do tratamento, utilizando todas as unidades de saúde. É um modelo exemplar. O diagnóstico tardio deve-se, realmente, a uma rede despreparada, ou ao médico que não está efetivamente treinado. Não é preciso que todo profissional faça o diagnóstico de hanseníase, mas sim a suspeita diagnóstica, para encaminhar o paciente a um especialista. Isso sim é, absolutamente, fundamental. O que não é possível é termos médicos que se formam sem saber, sequer, que o Brasil tem hanseníase, com a segunda maior ocorrência no mundo. É paradoxal que tenhamos, por exemplo, o maior programa público de transplante no mundo, programas de Aids, de reprodução assistida e de imunização fantásticos, mas não tenhamos eliminado a hanseníase.

Ieda: A maior prevalência no Maranhão é por conta da etnia?

Rosa: Não, é devido aos determinantes sociais. O Maranhão tem os piores índices de educação, de oferta de água potável e de esgoto, além de altas taxas de analfabetismo.

Leontina: Não é preciso ir até lá para ver essa situação. Nas favelas da Brasilândia, Vila Penteado, Morumbizinho e Jardim Ângela, entre outras, é a mesma coisa. Por isso, insisto que devemos capacitar o médico da rede pública e, também, da particular, além dos graduandos. Porém, o mais importante é a união entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação (MEC) para integrar as escolas médicas e as unidades de saúde.

Rosa: É essa intersetorialidade que queremos. Não se pode colocar nas mãos do setor da saúde toda a responsabilidade. A integração com a universidade é que vai dar sustentabilidade. Não basta treinar um médico que vai para um lugar que não é endêmico. Até porque, se eliminarmos a hanseníase como problema de saúde pública, ainda teremos 20 mil casos por ano, ou seja, vamos ter pacientes por muitos anos. A Índia já eliminou essa doença, pois tem menos de um caso para cada 10 mil pessoas –, mas como tem 1,2 bi habitantes, ainda produz 150 mil novos casos por ano. Por isso, eliminar – embora seja a meta pactuada – é muito pouco. Gostaria de ressaltar também que as ações de combate à hanseníase são prioritárias dentro do programa Brasil Sem Miséria do governo federal, pois esta doença contribui enormemente para o ciclo de pobreza.


"Parece claro que há necessidade de um diálogo como este para mostrar a urgência do problema" - Ieda

Ieda: Parece claro que há necessidade de um diálogo como este para mostrar a urgência do problema. E estamos no lugar certo, porque os Conselhos de Medicina estão trabalhando muito para melhorar a qualidade do ensino médico e as condições de saúde da população.

Rosa: Em 2005, o Conselho Federal de Medicina aprovou uma resolução, a pedido do Ministério da Saúde, determinando como imperativo ético e moral do médico o atendimento do paciente de hanseníase, na sua integralidade. A medida esclarece, também, os sinais e sintomas da doença, e como o médico deve proceder em caso de suspeita diagnóstica. A perspectiva, em longo prazo, é termos um outro problema. Diagnosticamos 85% dos casos na rede básica de saúde, mas são os mais evidentes. Quando superarmos essa fase, vamos precisar dos especialistas para diagnosticar os casos difíceis, com características pouco usuais.

Leontina: Por isso, levamos uma proposta à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo para treinar os médicos por meio de uma parceria com a secretaria municipal, envolvendo também as respectivas secretarias da Educação. Os professores podem ser orientados, por exemplo, a verificar se as crianças têm manchinhas e, em caso positivo, encaminhá-las à rede de saúde. Precisamos muito dessa integração entre o MEC e o Ministério da Saúde porque o padrão ouro será a capacitação dos graduandos da área da saúde, não só de Medicina, mas também de Odontologia, Fisioterapia etc.

Rosa: Concordo totalmente sobre um compromisso de trabalho conjunto ao final desse debate. O Ministério da Saúde sozinho não chega ao MEC. E só esta pasta tem o poder de efetuar uma mudança curricular. Além do Ministério da Saúde e do Cremesp, poderiam apoiar esse movimento os demais Conselhos e entidades médicas, e as sociedades de especialidades. Existe uma complexidade na chamada “mudança de grade curricular” dentro do MEC, e nós precisamos ter um processo de argumentação para conseguir levar a proposta adiante. Voltando à questão dos professores, quero anunciar para vocês que, de 17 a 21 de setembro, o Ministério da Saúde fará uma campanha nacional nas escolas da rede pública do ensino fundamental. Vamos trabalhar duas doenças, pela primeira vez no Brasil: a hanseníase e a verminose. Enviaremos uma ficha de autoimagem chamada “método do espelho” que as crianças deverão levar às suas casas, para que os pais ou responsáveis olhem seus filhos e marquem – no desenho de um corpo humano contido na ficha – onde encontraram manchas ou caroços. Além disso, a ficha faz quatro perguntas básicas para os pais: se tem manchas, se elas coçam e doem, se são vermelhas ou brancas, e se tem algum caso de hanseníase na família ou em conhecidos. As crianças deverão devolver a ficha em uma semana e, em seguida, o professor fará uma triagem. Aquelas cujos pais referiram algum desses sintomas serão encaminhadas para exame na rede básica de saúde ou serviços de referência.

Leontina: Aí vamos precisar saber se os médicos estão bem treinados e preparados.

Rosa: Fizemos uma reunião com o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), para que os gestores possam estruturar a rede para receber essas crianças. Durante o projeto-piloto diagnosticamos, em uma única escola, em Pernambuco, 19 crianças e 2 professores com sintomas. 34% delas tiveram contato com casos não tratados, ou seja, havia um circuito de transmissão ativo ao redor delas. Quando as ações de vigilância foram desencadeadas, encontramos 34% de pais, mães e irmãos não tratados. Além disso, soubemos que eles não estavam sendo tratados porque os horários de abertura dos postos de saúde eram os mesmos de seus trabalhos. Por isso, o Estado de Pernambuco já está trabalhando com horários de atendimento alternativos na rede pública.

Leontina: Aqui em São Paulo, temos doentes que demoram seis meses, ou até mais, para obter uma consulta especializada num posto de saúde.

Rosa: Se em São Paulo isso acontece, imagine no Norte e no Nordeste do país. Temos de considerar, também, que a qualidade de vida do paciente com hanseníase é muito complexa, porque ele termina o tratamento, mas as sequelas permanecem. Ele vai precisar de fisioterapia, terapia ocupacional e cirurgias reabilitadoras realizadas em pouquíssimos lugares no Brasil.

Leontina: O preconceito faz com que os pacientes com sequelas – não somente os de classe econômica alta, mas também os das classes mais desfavorecidas – inventem outros diagnósticos. Às vezes, não contam nem aos próprios cônjuges que têm a moléstia.

Rosa: Exatamente, porque a sequela é que faz o estigma da hanseníase.

Leontina: Mas o estigma vai existir enquanto o diagnóstico for tardio, e enquanto o MEC e o Ministério da Saúde não se juntarem.

Ieda: Sugiro que saia deste debate uma proposta para que o Cremesp e o CFM levem, ao Ministério da Saúde e ao MEC, a ideia de as duas pastas trabalharem conjuntamente visando treinar os estudantes de Medicina a diagnosticar as doenças negligenciadas, como a hanseníase.

Leontina: Acho fundamental este consenso sobre a necessidade da perfeita integração entre o MEC e o Ministério da Saúde, para que todos os egressos das escolas médicas saiam capacitados para diagnosticar os maiores agravos existentes em nosso país.

Rosa: Parabenizo o Cremesp pela iniciativa, pois o Estado de São Paulo já vem apresentando níveis de eliminação, com menos de um caso para cada 10 mil pessoas, mas mesmo assim a hanseníase continua na pauta das entidades médicas. Isto é exemplar e extremamente importante para nós. Abre-se aqui uma nova frente de trabalho extremamente importante.


Falta de saneamento básico é um dos determinantes de saúde nas áreas de maior endemicidade


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